<$BlogRSDUrl$>

mercredi, septembre 17, 2003

Retalhos da vida de um homem 

Pouco passa da meia-noite, é certo, mas passam já alguns minutos. Passámos por isso de dia; em termos de calendário, claro.
Cheguei a casa por volta das onze horas e quinze minutos da noite, depois de ter subido toda a serra que vai da estação de comboios até à minha casa. As camionetas por aqui acabam cedo. Fiz o percurso por etapas; facilita-me, pois torna-me a subida um pouco menos penosa, menos cansativa.
Cheguei a casa a escorrer água, não por causa da chuva que tem caído nas últimas horas, mas devido ao suor a que o cansaço me obrigou. Cheguei exausto.
Atirei a pasta de trabalho para um canto da sala – deveria tê-la atirado antes para um canto do escritório -, e , acto contínuo, dirigi-me à cozinha, onde tinha já os meus filetes temperados. Acendi o fogão, onde refoguei um bom pedaço de alho, sal e pimenta e de seguida fiz um molho de mostarda e açafrão bem embebido em natas. Só depois lhe misturei os filetes, aos quais lhe dei uma ligeira fritura. Não que adore peixe cru, mas acho que o peixe congelado já vem meio confeccionado. Após o molho estar pronto, os filetes ficaram prontos a comer em seis ou sete minutos. Agarrei num pedaço de pão, enfiei-o na frigideira, assoprei-o – não fosse queimar os beiços -, e provei-o. Óptimo. Estava óptimo.
Mas, no entanto, o cansaço foi mais forte do que eu, e do que a fome (que estaria escondida algures, num canto secreto do meu estômago, ou bloqueado no cérebro).
O puré de batata que previ fazer, bem salpicado de noz moscada, ficou por fazer. Desliguei o fogão e as luzes da cozinha, depois de ter tapado a frigideira – não vá, sabe-se lá porquê, algum bicho esquisito querer comer aquilo que eu vou comer um pouco mais tarde.
Dei alguns passos, espreitei o escritório, o resto dos quartos e as suas respectivas casas de banho, como que para me certificar de que estava realmente sozinho em casa. E o que rapidamente tinha previsto consumou-se. Sozinho. Sem intrusos, nem ladrões; safa!
Foi na sala que me instalei, até que a fome me chamasse, novamente, a atenção. Por ali fiquei um bom bocado a ouvir um pouco de soft jazz, misturado com free jazz, enquanto fumava um ou outro cigarro, um atrás do outro, por intervalos de tempo mais ou menos curtos, ou mais ou menos longos, ao mesmo tempo que ia bebendo o vinho branco que tinha destinado para o meu quase-sushi.
Houve alturas em que pensei: «Vou adormecer aqui, a ouvir esta música até a deixar de ouvir. Até passar para o mundo dos sonhos, ou do sono profundo». Mas resisti. Fiquei bem acordado por um bom par de horas, até que a barriga me começou a dar horas; com aquele ratinho a remoer-me o estômago. Foi nessa altura que logo pensei em me levantar apressadamente do sofá onde estava esponjado e dirigir-me apressadamente para a cozinha, destapar a frigideira, voltar a acender o fogão para que o meu molho de açafrão e mostarda voltasse a ficar líquido, em vez daquela consistência viscosa. Foi nesta mesma altura que a música parou e a sala, e toda a casa, ficou em silêncio. Silêncio, uma maneira de dizer, ou de tentar – omitindo -, explicar o que ouvia.
Antes de me levantar do sofá, onde há um bom par de horas estava estendido, no meio daquele silêncio quase rural – vivo longe das grandes estradas -, ouvi o som da chuva. Fiquei um bom bocado no meio do silêncio da casa a ouvir o cair da chuva (que tanto adoro ouvir, desde que esteja bem abrigado; e na altura estava).
Decidi que o meu quase-sushi poderia esperar mais um pouco, pois os prazeres da vida não podem ser gozados todos de uma só vez – acho eu, pelo menos é o que o correr, contínuo, da vida me tem ensinado, ou obrigado.
Fiquei uma dezena de minutos a ouvir a chuva a cair. Sossegado. Sim, sossegado, até ao segundo em que fui sobressaltado por um enorme trovão. «Uma trovoada, em começo de Primavera», pensei, achando esquisito. E ao mesmo tempo voltei a pensar: «Um trovoada, em plena Primavera, com relâmpagos e tudo, não acontece todos os dias». É uma dádiva de Deus, ou da natureza, ou dos dois, ou só do primeiro que criou a natureza, mas não acontece todos os dias; pelo menos com este esplendor, de relâmpagos consecutivos, que parecem querer que a noite se faça já dia.
Foi então que me ocorreu correr para a janela e apreciar cinco prazeres da vida ao mesmo tempo: o silêncio da casa, o cair da chuva, o troar dos trovões, a luz dos relâmpagos e o meu quase-sushi.
Foi coincidência, sorte, o destino, pensei. Deve ter sido sorte, voltei a pensar.
E logo me veio ao pensamento: «se for sorte, no sábado ganho o totoloto». Se não for, vou continuar pobre, maldito destino, desconhecido mas marcado.
CC
abcd2003@tiscali.fr

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Autor: Gustavo Aleixo Weblog Commenting by HaloScan.com
Search this site or the web powered by FreeFind

Site search Web search
Site Meter Tire todas as suas dúvidas sobre blogs. links to this post